Mineração pode atingir 1/3 das áreas indígenas do País

Escrito por Ricardo Galhardo e Giovana Girardi

A determinação do governo federal de permitir a exploração mineral em terras indígenas tem potencial para afetar quase um terço das reservas no País. Prevista na Constituição de 1988, a atividade em territórios demarcados nunca foi regulamentada e é alvo de discussão no Congresso há décadas. O assunto vem sendo tratado com insistência pelo presidente Jair Bolsonaro, declaradamente favorável à mineração nessas áreas.
Joenia Wapichana, deputada federal, primeira indígena eleita deputada (Roraima Rede) durante o evento Perspectivas dos Direitos Constitucionais Indígenas
Joenia Wapichana, deputada federal, primeira indígena eleita deputada (Roraima Rede) durante o evento Perspectivas dos Direitos Constitucionais Indígenas
Foto: Fátima Meira / Futura Press
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), há 4.332 requerimentos para exploração do subsolo em 214 das 735 áreas indígenas registrados na Agência Nacional de Mineração – 29,1% do total, inclusive nos parques indígenas de Tumucumaque (AP e PA), Araguaia (TO) e Aripuanã (MT).
Os requerimentos envolvem a exploração de 66 substâncias, principalmente ouro. A maioria, 88%, é de pedidos para pesquisa, ou seja, sem comprovação científica de que existam minérios nessas áreas. Conforme especialistas, grande parte desses requerimentos é das décadas de 1980 e 1990, protocolada antes da demarcação das terras indígenas, e tem como objetivo garantir aos autores dos pedidos prioridade caso a exploração seja autorizada, prática comum no setor.

Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que representa as empresas do setor, disse que a exploração em terras indígenas está fora da pauta da entidade há décadas. Para o instituto, antes de falar em legalização, o governo deveria fazer um levantamento científico sobre as potencialidades dos territórios, com a participação de comunidades originárias.

“O governo poderia, num primeiro momento, elaborar um mapeamento geológico, para se estabelecer possíveis ocorrências de minérios. Esta seria uma fase importante para se fomentar um diálogo mais consistente, inclusive, com o envolvimento dos povos indígenas, de acordo com princípios de sustentabilidade e segurança para os ocupantes das terras”, afirmou a entidade.

Bolsonaro falou em legalizar o “garimpo” nessas áreas ao comentar a morte do cacique Emyra Waiãpi, supostamente vítima de garimpeiros no Amapá. Na sexta-feira, após pesquisa Datafolha apontar que 86% da população é contra a medida, ele disse que vai submeter o assunto a uma consulta popular.

Ainda na semana passada, o presidente afirmou que pretende criar “pequenas Serras Peladas”, que poderiam ser exploradas tanto por índios quanto por estrangeiros. Um grupo de estudo sobre o tema foi criado no Ministério de Minas e Energia.

Lei

Prevista na Constituição, a exploração em áreas indígenas por garimpeiros ou mineradoras nunca foi regulamentada. Pela lei, essas terras são da União e se destinam à posse permanente dos índios que as ocupam. Porém, há regimes distintos de propriedade. Jazidas do subsolo são passíveis de concessão, desde que a atividade tenha sido aprovada pelo Congresso e pelos indígenas, que devem ter direito a uma parte do lucro.

Isso não impede que garimpeiros invadam reservas para extração ilegal, às vezes com anuência dos índios. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o total de invasões subiu de 11 em 2016 para 17 em 2017.

Em 1996, o Senado aprovou projeto do então senador Romero Jucá (MDB-RR), cuja família tem interesse na exploração em terras ianomâmis. O projeto se arrasta na Câmara. Em 2004, foi criado grupo de trabalho após massacre na terra indígena Roosevelt (RO), sem resultado prático. Em 2018, uma comissão especial foi formada. Um substitutivo relatado pelo deputado Édio Lopes (PL-RR) obteve o acordo de vários setores, mas não foi votado.

Para estudiosos, a falta de controle pelo Estado torna a legalização inviável. “Deve-se questionar a ideia simplória segundo a qual os índios se beneficiariam por royalties. Quem controlaria a quantidade de minério extraído para assegurar o pagamento correto dos royalties?”, disse a antropóloga Dominique Gallois, da USP. Índios que concordarem com a mineração, afirmou, devem ser assistidos por Ministério Público e Funai.

Lopes disse acreditar que, se o governo não “ideologizar” a questão, ela pode avançar, e que trabalha pela regulamentação racional da atividade. “Não podemos simplesmente autorizar a mineração nessas áreas. Senão, vai ser um genocídio.”

Risco. Líderes indígenas, ambientalistas e estudiosos ouvidos pelo Estado disseram que, mesmo com a concordância das lideranças locais, a possibilidade de legalização põe comunidades em risco. Segundo eles, experiências do passado mostram que a exploração ilegal de minério deixou um legado de contaminação dos rios, desmatamento, doenças, drogas e prostituição nas comunidades. Além disso, contestaram a capacidade do governo de controlar mineradoras e garimpeiros.

“Não é o garimpo que vai nos sustentar e as autoridades não vão conseguir fiscalizar as atividades. Não conseguem fiscalizar nem fora das áreas indígenas”, disse a líder indígena Alessandra Korap Munduruku. A opinião dela é embasada em números. Estudo da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georrefenrenciada (Raisg) no ano passado aponta a existência de 2.312 pontos de garimpo ilegal em seis dos nove países da Amazônia Legal.

Alguns indígenas que lucram com a exploração, no entanto, defendem a atividade. É o caso dos Uaimiri-atroari de Presidente Figueiredo (AM). Após terem sido quase dizimados por doenças e conflitos decorrentes da exploração da mina de Pitinga, nos anos 1980, eles chegaram a um acordo com a mineradora e hoje recebem um “pedágio” para que o minério seja transportado por suas terras.

Procuradas, a Funai e a Secretaria de Comunicação do Planalto não se manifestaram.

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