Ídolo no Flamengo e outros clubes, ex-goleiro Emerson declara que “é possível ser gay, ídolo e ganhar títulos”

Era apenas um amistoso na pré-temporada do Grêmio em 1993, contra o Capão da Canoa. Aos 12 minutos do primeiro tempo, o goleiro Kita, do Capão, lança o atacante Melancia. Ao ver o ponta livre, o jovem goleiro Emerson, então com 21 anos, se joga com força sobre o adversário para impedir o chute.

O choque provocou na perna direita de Emerson uma lesão gravíssima que o afastaria dos gramados por praticamente dois anos. Ninguém entendeu o reflexo arriscado em um jogo que não valia nada, e que terminaria inclusive com um placar elástico — 6 a 1 para o Grêmio.

Naquela altura, Emerson já era um goleiro das categorias de base da seleção brasileira, valorizado e assediado. E isso virou um fardo. Quanto mais famoso ficava, maior o risco de ser descoberto como homem gay pelos companheiros, pela mídia e até pela família.

— Eu me joguei desesperado. Na verdade, o desespero era outro, não era um desespero para não tomar gol. A minha vida pessoal, a cada defesa que eu fazia, cada vez que eu me destacava mais dentro de campo, o buraco vazio aumentava também inversamente proporcional. Quanto mais famoso eu ficava, mais difícil se tornava ser gay dentro desse ambiente.

— Eu não tinha tido contato com o mundo gay até então, com 21 anos. Então, quando eu quebrei a perna, e foi uma lesão grave que poderia inclusive ter ter acabado com minha carreira, porque quebrou a tíbia e fíbula, eu acabei saindo de cena, apesar de toda a fama e todo a comoção que causou no Rio Grande do Sul. Mas eu acabei saindo de cena um pouco e foi o que me deu a oportunidade de poder repensar algumas coisas e começar a equilibrar isso. Foi inconsciente, mas foi um ato de desespero mesmo para tentar mudar o rumo das coisas.

Emerson é o convidado especial do último episódio do podcast do ge “Nos Armários dos Vestiários”. Decidiu falar publicamente sobre como lidou com sua sexualidade durante os mais de 30 anos de futebol para ser um exemplo positivo especialmente para os atletas mais jovens que eventualmente se sintam presos no armário por causa do preconceito.

— O ambiente do futebol é muito hostil para um gay, muito mesmo. Eu fico imaginando quantos garotos desistiram de se tornar jogador de futebol por conta disso, por perceberem essa situação. Quantos talentos foram perdidos? O futebol perdeu, os clubes perderam, porque o ambiente realmente não ajuda. Eu segui com tudo isso, mas sofri com as consequências de seguir, era o meu sonho. Eu queria ser goleiro do Grêmio. Eu queria ser um jogador de futebol. Eu eu conquistei isso, só tive que que enfrentar um outro lado que é muito difícil.

O tempo parado de Emerson foi valioso. Embora tenha custado a posição de titular no Grêmio, o período afastado dos gramados foi importante para que entendesse suas questões pessoais e começasse a ter contato com outros homens, coisa inimaginável até o momento da lesão.

Em 1999, Emerson conquistou o título da Copa do Brasil com o Juventude. Em 2001, pelo Bahia, foi eleito bola de prata como melhor goleiro do Brasileirão. Também jogou por Flamengo, América-RN, América-RJ, Ituano, Bragantino e Vitória.

Confira alguns trechos da entrevista:

Vida solitária
— Não tive contato nenhum com o mundo gay até os 21 anos. E o que ouvia era o pensamento de todo mundo da família que reproduzia o pensamento da época e do local, o Rio Grande do Sul, um estado bem machista, conservador. Falavam que ser gay era sem-vergonhice, descaração, uma aberração. Era inferiorizado, muito relacionado à promiscuidade. Então, tudo o que era negativo, se jogava lá. Eu cresci ouvindo isso.

— Até entender o meu processo demorou muito tempo porque não tinha contato com ninguém no mundo gay para conversar, não conversava com ninguém sobre isso. Sentia os desejos, mas não entendia direito. Quando eu entendi o que era, demorou tempo para aceitar o fato e depois ainda demorou muito tempo para aceitar me relacionar com alguém do mesmo sexo. Foi um processo muito demorado, e eu acho que o pior de tudo foi solitário. Não tive com quem dividir esse peso. Eu enfrentei tudo sozinho. Tentei entender tudo sozinho, e era uma criança, era um adolescente, sem acesso à informação.

Opção de não casar por aparência
— Lógico que existem gays no futebol, e muitos optam por casar. Dessa forma, eles se protegem, se enquadram num padrão que é aceito. Eles se protegem da suspeita de serem homossexuais e aí conseguem sobreviver. Só que normalmente, quando você faz isso, acaba levando uma vida infeliz, fazendo a outra pessoa infeliz. Eu optei por não casar. Optei por não enganar ninguém, por enfrentar tudo sozinho. Talvez aí também veio a fama, os comentários, porque eu nunca casei. Eu nunca aparecia com uma namorada, então esses comentários sempre surgiam. Quando tinha alguma reunião, algum churrasco de atletas que todo mundo levava a esposa, eu estava sempre sozinho. E, logicamente, os outros jogadores falavam muito, mas eu optei por enfrentar.

A fama de gay prejudicou
 Eu parei de jogar com 35 anos, fui até o final, joguei em vários clubes. Sei que a fama me prejudicou bastante. Eu poderia até ter tido muito mais sucesso. Poderia ter feito muito mais coisas do que fiz, ter conquistado muito mais coisas. Eu acredito que é muito positiva (a carreira), principalmente por ter conseguido enfrentar tudo isso, ter sobrevivido até o final. O fato de ser gay não me parou, eu fui até o final. Mas sei de dirigentes que não me contrataram porque eu sou gay.

Gays, vestiários e virilidade
 Tem duas coisas que precisam ser desconstruídas. Primeiro que gay não tem virilidade. É uma mentira isso. Gays sempre existiram dentro do futebol e todos que tiveram sucesso, toda vez que precisaram ser viris, eles foram. Toda vez que eu precisei ser viril, ser competitivo, eu fui. E, segundo, que um gay vai criar problemas dentro do vestiário, situações constrangedoras. E eu volto a falar sobre um exemplo de alguém que jogou dos oito aos 35, portanto, quase trinta anos. Nunca criei problema nenhum dentro de vestiário, pelo contrário, sempre foi tido como um comportamento exemplar, um profissional. Os dirigentes acabam evitando, e perdem talentos, não é? Muitas vezes são jogadores talentosos que podem entregar desempenho esportivo e gerar receita para o clube.

Emerson Ferretti, ex-goleiro — Foto: Marcos Ribolli

Emerson Ferretti, ex-goleiro — Foto: Marcos Ribolli

Xuxa e clipe de “Amor meu grande amor”, do Barão Vermelho
— Algumas coisas eu encarava como uma tarefa profissional. Por exemplo, na participação da Xuxa, fui com outros atletas também. Então, encarava mais dessa forma, como um trabalho profissional. Mas o medo sempre me acompanhou, o medo de acharem isso, que eu era gay. Houve proteção, sempre houve proteção.

Título da Copa do Brasil de 1999
— Foi o grande título da minha carreira. Entre outros que eu tive, foi um grande momento. Depois que eu quebrei a perna, foram quatro anos jogando pouco. Eu fiquei dois ou três anos jogando em clubes menores, mostrando meu trabalho, até que chegou o Juventude. O título da Copa do Brasil foi a minha redenção. É mostrar que o Emerson, que aquele goleiro lá de Seleção de base, que iniciou a carreira muito bem no Grêmio, que quebrou a perna duas vezes, que passou muito tempo sem jogar, estava de volta.

Emerson Ferretti foi campeão da Copa do Brasil de 1999 pelo Juventude — Foto: Reprodução

Emerson Ferretti foi campeão da Copa do Brasil de 1999 pelo Juventude — Foto: Reprodução

Saúde mental comprometida por décadas
— Eu sofri bastante. Várias vezes eu pensei em desistir. Tive depressão, principalmente por conta da solidão. Eu não tinha com quem dividir isso e era um peso muito grande nas minhas costas. E ao mesmo tempo precisava entregar desempenho, porque no futebol, se você não entrega desempenho, se não joga bem, perde a sua posição, perde contratos. Mas se preocupavam com a condição técnica, condição tática, a condição física, que são importantes. E o emocional? O futebol não virou um negócio? O objetivo não é receita? Então trate bem da saúde mental dos seus atletas.

— Fica aí também um aviso para os clubes cuidarem um pouquinho mais. Isso daí não é frescura. Tantos outros atletas de outras modalidades estão sinalizando isso. Alguns se afastam e falam que precisam cuidar da minha saúde mental. A pressão é muito grande para desempenho, para resultado, chega uma hora que você precisa dar uma pausa, precisa de um apoio. E, no futebol, quase nunca a gente tem esse apoio. Se a gente falar ou buscar esse apoio, é tido como fraco. É um grande erro, precisa ser mudada essa visão. Fica aí um aviso, um alerta.

Por um futebol sem estereótipos e sem julgamentos
 Dá para jogar sem precisar se enquadrar num estereótipo, sem casar, sem causar nenhum tipo de constrangimento dentro de um vestiário, que é um dos grandes medos dos dirigentes no futebol. Eu acho que criar problema dentro do clube vai muito mais de desvio de caráter, e isso pode ser para qualquer pessoa, independentemente da orientação sexual. Eu sou a prova viva que dá para fazer tudo isso. Um gay pode jogar futebol e conquistar tudo sem trazer problema nenhum, inclusive entregar resultados esportivos, como entreguei em vários clubes.

Assédio quando era presidente do Ypiranga
— Fui assediado algumas vezes por atletas do clube que ouviram sobre a minha fama. Todos quebraram a cara. Jamais misturei as coisas como jogador, sendo presidente então… Jamais. Claramente se ofereciam em busca de alguma coisa, mas levaram um não como resposta.

Emerson Ferretti, ex-goleiro — Foto: Marcos Ribolli

Emerson Ferretti, ex-goleiro — Foto: Marcos Ribolli

Motivação para falar e ser exemplo
— É possível ser gay, ídolo e ganhar títulos. Dá para ser um jogador talentoso. Dá para ter sucesso no futebol. Eu cumpri minhas obrigações dignamente. Fui profissional e entreguei desempenho, isso acaba me motivando para deixar um legado fora de campo também. Falar sobre o assunto, jogar luz sobre o assunto vai fazer, com certeza, primeiro, quebrar um pouco esse silêncio que existe, porque sempre existiu gay no futebol. Só que ninguém fala, todo mundo ignora isso, faz de conta que não tem.

— A gente, jogando luz sobre o assunto, vai facilitar a vida de outras pessoas que se encontram na mesma situação que eu me encontrei quando jogava com medo, tendo que me proteger, às vezes tendo que casar com quem não quer, para poder viver de aparências ou até mesmo desistir do futebol. Então esse é um legado que eu pretendo deixar fora de campo e falar sobre o tema. Isso é um exemplo de que pode, sim, ser um jogador de futebol e conquistar tudo o que você queira sem precisar sofrer tanto.

Futuro
— O que vai ser daqui para frente? Eu não sei. Pode ser que muita gente se decepcione, pode ser que muita gente acolha, entenda, ache um ato de coragem, tenha mais orgulho. Aí depende também de uma série de circunstâncias, e depende muito mais da cabeça das pessoas. Eu já provei porque sou um profissional que cumpre com minhas obrigações dignamente. Fiz isso enquanto atleta, fiz isso enquanto dirigente, faço enquanto comentarista esportivo, integrante da imprensa. Se alguém mudar a opinião a meu respeito por conta disso e fechar as portas por isso é problema deles.

— Eu vou seguir minha vida, tenho coisas a acrescentar. Acho que isso que eu estou falando já estou acrescentando muito para o futebol e para a sociedade, era necessário alguém falar sobre o assunto. A gente já começou, o Richarlyson e o Igor Benevenuto foram corajosos também. Acredito que vai ajudar muita gente que se encontra numa situação semelhante. É esse o objetivo também. Deixar esse legado, ser um farol para outras pessoas que se identifiquem com uma situação semelhante à minha para poder começa a mudar a visão que as pessoas têm em relação a um gay dentro do no futebol. Espero que possa contribuir com o assunto me expondo dessa forma, sendo verdadeiro e contando a minha história.

Fonte: GE / Foto: Marcos Ribolli

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