Governo segue sem previsão de distribuir absorventes a mulheres seis meses após promulgação de lei

Seis meses após promulgação de lei e assinatura de decreto em prol da saúde menstrual, o governo federal segue sem previsão de pôr em prática a distribuição gratuita de absorventes higiênicos a mulheres vulneráveis e de baixa renda.

A lei completa que instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, para assegurar a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual, foi promulgada em março deste ano.

O prazo de 120 dias previsto para que entrasse em vigor se esgotou em julho. O programa tem como beneficiárias estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino, mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema, mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal, e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

O Ministério da Saúde defendeu que “trabalha de modo legal, com respaldo jurídico, por ser uma nova iniciativa que envolve transferência de recursos”, devido às limitações do período eleitoral.

A legislação eleitoral proíbe que, nos três meses que antecedem o pleito, haja transferência voluntária de recursos da União aos estados e municípios e dos estados aos municípios, sob pena de nulidade de pleno direito.

São ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou de serviço em andamento e com cronograma prefixado, bem como os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública. Ou seja, não pode haver esse tipo de transferência de recurso desde 2 de julho.

Enquanto isso, as mulheres que deveriam ser atendidas pelo programa seguem sem receber os absorventes íntimos previstos. De acordo com o Ministério da Saúde, o programa ainda não está totalmente pronto.

A pasta informou que ele “está em elaboração e será regulamentado em portaria”. O ministério disse que “a publicação trará, entre outros detalhamentos, a data de início de repasse de recursos aos municípios para a aquisição de absorventes para atendimento ao público”. Não há previsão de data, até o momento.

A reportagem pediu uma série de informações detalhadas sobre o tema desde 18 de agosto, mas o ministério apenas reiterou que o “início do repasse de recursos para os municípios adquirirem absorventes higiênicos se dará após a publicação de portaria”.

Queda de braço entre Bolsonaro e Congresso

Em 8 de março deste ano, em evento no Dia das Mulheres, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), assinou decreto para combater a precariedade menstrual e para distribuir absorventes de graça, entre outros itens de higiene. Ao contrário da lei, o decreto entrou em vigor assim que publicado.

O decreto foi assinado às vésperas da derrubada pelo Congresso de um veto presidencial que tinha o objetivo de não permitir a distribuição gratuita dos absorventes. Isso porque o Congresso havia aprovado, em setembro do ano passado, um projeto de lei para viabilizar essa distribuição ao criar o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual.

Ao sancionar o texto, porém, Bolsonaro vetou trecho que previa a oferta dos absorventes e outro que trazia a lista de beneficiárias, entre mais pontos. Na época, alegou falta de fonte de custeio e incompatibilidade com a autonomia das redes e estabelecimentos de ensino.

O presidente decidiu assinar o decreto em meio à mobilização de parlamentares para a derrubada de seu veto, o que acabou acontecendo dois dias depois do ato. A lei foi promulgada mais tarde, também em março deste ano.

Execução condicionada a recursos disponíveis

O decreto assinado por Bolsonaro diz que ato do Ministério da Saúde estabelecerá “a forma de execução e os procedimentos para adesão dos entes federativos ao programa no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

Além disso, determina que a execução do programa fica “condicionada à disponibilidade orçamentária e financeira”. Na época da assinatura do decreto, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que serão destinados R$ 130 milhões ao programa de saúde menstrual.

Questionado pela CNN, o ministério não respondeu quais as ações em curso para garantir a oferta gratuita de absorventes higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual, como rege a lei em vigor.

Minuta de portaria está pronta, diz ministério a senadora

A líder da bancada feminina no Senado, Eliziane Gama (Cidadania-MA), enviou requerimento de informação ao Ministério da Saúde com série de questionamentos sobre a aplicação do programa e a distribuição de absorventes em meados de agosto.

“A pobreza menstrual é um problema de saúde pública e a demora em regulamentar e implementar a efetiva aplicação da Lei n.º 14.214 de 06 de outubro de 2021 prejudica mais de 6 milhões de mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade social. Essa demora é inconcebível, é um desrespeito às mulheres brasileiras de baixa renda que precisam usar jornal, miolo de pão e tecido durante o período menstrual”, escreveu na justificativa para o pedido.

Na quarta-feira (14), o Ministério da Saúde informou à senadora que iniciou os procedimentos necessários para a elaboração da portaria e defendeu que, desde a publicação da lei, a Secretaria de Atenção Primária à Saúde articula reuniões junto aos Departamentos dos Ciclos da Vida, de Saúde da Família e de Promoção da Saúde, que possuem ações e serviços de saúde voltados para beneficiárias abrangidas.

Uma análise de impacto regulatório foi finalizada e ficou disponível para contribuições de diversas áreas do ministério. A partir do documento, foi feita uma minuta da portaria.

“Atualmente, a minuta da portaria encontra-se em fase de avaliação, para posterior validação do Gabinete da Secretaria de Atenção Primaria da Saúde e, por conseguinte, sua publicação pelo Ministério da Saúde”, afirmou a pasta à senadora.

A minuta também deve ser submetida à consultoria jurídica para emissão de parecer quanto à legalidade e viabilidade da publicação dela em 2022. O ministério apontou que a publicação da portaria esbarra na legislação eleitoral, que veda a transferência de recursos a três meses do pleito.

“No momento, não é possível apontar data para a publicação da portaria em comento, em que pese estejam sendo empregados todos os esforços necessários para que isso ocorra com a maior brevidade possível”, disse o governo federal. O gabinete da Secretaria de Atenção Primária à Saúde ainda articula possível data junto ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) para tratarem do assunto.

Outras ações previstas

O decreto assinado por Bolsonaro diz que o Ministério da Justiça e Segurança Pública fomentará a implementação de projetos, programas e ações voltadas à disponibilização de absorventes para mulheres privadas de liberdade, recolhidas em unidades do sistema penal. Procurado, o Ministério da Justiça pediu que a reportagem procurasse o Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

Este informou ter disponibilizado R$ 3.796.000 em recursos do Fundo Penitenciário Nacional para serem repassados às unidades federativas para ações na área, com orientações encaminhadas pela Coordenação de Políticas Para Mulheres e Promoção das Diversidades.

O Depen também citou a implantação de projeto piloto de oficina para a produção de absorventes e bioabsorventes pelas mulheres privadas de liberdade. A previsão é que custe, ao menos, R$ 1,5 milhão.

“O projeto está em fase de instrução processual, não havendo até a presente data, repasse de recurso para sua execução”, observou.

De acordo com dados oficiais de dezembro do ano passado, há 30.625 mulheres privadas de liberdade em celas físicas no sistema penitenciário brasileiro, disse. Em prisão domiciliar, são contabilizadas 11.659 mulheres. A estimativa é que 73% delas tenham entre 18 e 45 anos, e, portanto, menstruam, informou a assessoria do Depen.

O decreto também afirma que o Ministério da Educação promoverá, em colaboração com os entes federativos, campanha informativa nas escolas da rede pública sobre a saúde menstrual e as suas consequências para a saúde da mulher, observadas as diretrizes definidas pelo Ministério da Saúde. O Ministério da Educação não deu retorno.

A lei promulgada ainda estabelece que as cestas básicas entregues no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) deverão conter o absorvente higiênico feminino como “item essencial”.

O Ministério da Cidadania, responsável pelo Sisan, também não se manifestou.

ONU aponta que quase 90% de meninas passarão até 7 anos na escola menstruando

Relatório do Fundo de População das Nações Unidas Brasil (UNFPA) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sobre a pobreza menstrual no país, publicado no ano passado, aponta que quase 90% das meninas passarão entre 3 a 7 anos da sua vida escolar menstruando.

Segundo o UNFPA e o Unicef, cerca de 321 mil alunas, 3% do total de meninas estudantes brasileiras, estudam em escolas que não possuem banheiro em condições de uso, sendo a situação mais crítica no Nordeste e no Norte.

O documento também mostra outras dificuldades de infraestrutura, como falta de papel higiênico, sabão e pia em condições de uso.

“Quase 200 mil alunas estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da sua menstruação na sua escola”, diz.

Na avaliação dos fundos das Nações Unidas, os problemas “seriam facilmente prevenidos com os devidos investimentos em infraestrutura e acesso aos produtos menstruais”.

“Além disso, quando vivenciada desde a infância, a pobreza menstrual pode resultar ainda em sofrimentos emocionais que dificultam o desenvolvimento de uma mulher adulta com seus potenciais plenamente explorados”, complementa.

 

Fonte: CNN Brasil / Foto: Getty Images

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