Pouca energia que ainda existe no território vem de painéis solares suficientes para carregar apenas celulares; reativação das linhas passa por ‘decisão política’, dizem especialistas
Quando o sol se põe em Gaza, os seis filhos de Mariam Abu Amra entram em pânico. Eles têm medo do escuro e, desde o início da guerra, sua casa como breu à noite. A vizinhança é iluminada apenas pelas telas dos celulares, que consomem uma preciosa bateria. Há um ano, falta energia elétrica na Faixa de Gaza e seus habitantes precisam se contentar com alternativas que não atendem às suas necessidades mais básicas.
— Toda noite é uma luta para nós — disse a Abu Amra, 36 anos, que mora em Deir al-Balah, região central de Gaza. — Às vezes, meus filhos me perguntam quando a eletricidade voltará, mas eu não tenho a resposta.
A eletricidade é um alicerce fundamental da vida moderna, e Gaza tem tido muito pouco dela desde que Israel tomou medidas para cortar seu fornecimento. Esse apagão de um ano é a base de quase todas as privações impostas pela guerra e transformou as necessidades básicas — de equipamentos médicos em funcionamento a luzes noturnas nos quartos — em luxos.
— Nunca soube o quanto as pessoas e as famílias daqui, inclusive eu, dependiam da eletricidade — disse Abu Amra, que agora cozinha em uma fogueira e lava a roupa à mão antes do pôr do sol. — Agora tenho que acordar cedo para não perder um minuto sequer da luz do dia.
Antes da guerra, anos de conflito e um bloqueio econômico israelense e egípcio imposto para enfraquecer o Hamas deixaram a rede elétrica de Gaza capaz de fornecer apenas algumas horas de energia por dia.
Cortar o acesso de Gaza à eletricidade israelense foi uma das primeiras medidas tomadas pelas autoridades israelenses após o ataque de 7 de outubro liderado pelo Hamas. Alguns palestinos puderam recorrer a geradores ou à energia solar, mas Israel restringiu severamente a capacidade de trazer novos painéis solares e o combustível que faz os geradores funcionarem, argumentando que o Hamas estocou combustível destinado a civis para usar em ataques com foguetes.
As medidas permaneceram em vigor durante toda a guerra, mesmo nos lugares onde as poucas linhas de energia em funcionamento ainda conectam a rede elétrica de Israel à infraestruturas críticas em Gaza, como uma grande usina de dessalinização de água..
— Em alguns casos, as linhas de energia estão funcionando, eles só precisam ligá-las, e essa é uma decisão política — disse Georgios Petropoulos, funcionário do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários em Gaza. — Muitas dessas questões não são mais problemas técnicos ou de abastecimento, são questões políticas.
Desde o início da guerra, grupos humanitários têm criticado a decisão de cortar a energia de Gaza. Em resposta, Israel Katz, que era ministro da Energia na época e foi nomeado ministro da Defesa na semana passada, implicitamente colocou a culpa no Hamas e em outros grupos armados em Gaza por manter reféns sequestrados durante o ataque.
— Ajuda humanitária para Gaza? — questionou Katz. — Nenhum interruptor elétrico será ligado, nenhuma torneira de água será aberta e nenhum caminhão de combustível entrará até que os reféns israelenses voltem para casa.
Israel permitiu a entrada de alguma ajuda humanitária em Gaza após um protesto internacional, mas voltou a limitá-la em agosto e setembro. No mês passado, o governo americano alertou Israel que, se não permitisse a entrada de mais suprimentos humanitários em Gaza, isso poderia desencadear um corte da ajuda militar do país.
O Coordenador de Atividades Governamentais nos Territórios Palestinos, o braço do Ministério da Defesa de Israel que administra os assuntos na Cisjordânia e em Gaza, disse que “facilita ativamente a entrada e o transporte de combustível para instalações humanitárias, incluindo hospitais, padarias e outras infraestruturas essenciais”. Segundo ele, os militares permitiram que 30 milhões de litros de combustível entrassem em Gaza desde o início da guerra, bem como 50 painéis solares nos últimos meses. O Ministério da Energia de Israel, porém, não respondeu aos pedidos de comentários.
Grupos de ajuda humanitária dizem que é necessário muito mais para restaurar a eletricidade e lidar com a crise humanitária no território.
O apagão fez com que os hospitais pedissem repetidamente por combustível para fazer funcionar seus geradores, enquanto a corrente elétrica flui livremente nas cidades israelenses a poucos quilômetros de distância. Alaa al-Din Abu Odeh, diretor de engenharia e manutenção do Ministério da Saúde de Gaza, disse que os hospitais do território estavam “funcionando com a bondade e a misericórdia de Deus”.
Condições deploráveis
Os danos não reparados causados pelos repetidos conflitos entre o Hamas e Israel já haviam deixado a infraestrutura elétrica do enclave “em condições deploráveis” mesmo antes do início da guerra, de acordo com um relatório do Centro para Estudos Estratégicos Begin-Sadat, um think tank israelense da Universidade de Bar-Ilan.
As pessoas no território sobreviviam com um sistema de remendos no qual metade da eletricidade era gerada em Israel e metade em Gaza, de acordo com o relatório. A energia de Gaza vinha de uma mistura de fontes, incluindo uma usina de energia alimentada por diesel de Israel e do Egito, geradores particulares também alimentados por combustível e painéis solares nos telhados de casas e empresas.
Tantas pessoas apostaram nos painéis solares que Gaza tinha uma das maiores densidades do mundo de sistemas solares em telhados, de acordo com um relatório publicado em novembro de 2023 pelo Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, um think tank de Washington.
Os que sobreviveram ao longo do último ano eram pequenos demais para alimentar algo muito maior do que um celular, mas, ainda assim, foram uma tábua de salvação. Muitos de seus proprietários se tornaram vendedores de eletricidade em tempos de guerra.
Mohammed Samra, 23 anos, comprou painéis solares em dezembro passado quando percebeu que a guerra não terminaria tão cedo e, desde então, transformou-os em uma empresa familiar em al-Maghazi, na região central de Gaza.
— Todas as pessoas daqui, tanto os residentes locais quanto os deslocados, se beneficiaram com esses painéis solares — disse Samra em sua loja, onde cobra um shekel, ou cerca de 25 centavos de dólar, para carregar um celular.
O negócio de energia solar ajudou sua família a arcar com as necessidades, como alimentos, em meio à rápida inflação dos tempos de guerra, disse ele. O preço dos painéis também aumentou: na época, Samra comprou oito painéis solares, quatro baterias e um painel de controle por US$ 2.800 (R$ 16,1 mil), mas estima que hoje eles custariam US$ 16 mil (R$ 92 mil).
Para Rasha Majed al-Attar, 20 anos, o sol em Gaza tem sido “uma bênção” em meio ao caos ao seu redor em Deir al-Balah, para onde sua família fugiu da Cidade de Gaza.
Várias vezes por semana, ela caminha até uma estação de recarga próxima e carrega 10 telefones com um painel solar. Ela disse que sua família os usa principalmente como luzes noturnas para seus filhos que choram no escuro.
As coisas eram diferentes antes. Ela era uma estudante universitária. Sua casa tinha uma geladeira, uma TV e internet. Sua mãe lavava a roupa em uma máquina de lavar e preparava as refeições em um forno.
Agora, eles lavam a roupa à mão e cozinham em fogo aberto, disse ela, enquanto esperava que seu telefone carregasse. Às vezes, eles queimam as refeições porque cozinhar em uma fogueira não é nada parecido com cozinhar em um fogão em casa.
— Não consigo imaginar que estamos vivendo no século 21 enquanto lutamos tanto para conseguir as coisas mais básicas — disse al-Attar.