Uma enorme cidade subterrânea, que permaneceu ativa por milhares de anos quase sem interrupções, repousa a mais de 85 metros de profundidade, abaixo das famosas “chaminés de fadas” da Capadócia, na Turquia.
Rajadas de vento violentas erguem o solo no ar enquanto passeio pelo Vale do Amor da Capadócia. Colinas com tons de amarelo e rosa tingem o panorama marcado por profundos cânions vermelhos e formações rochosas que parecem grandes chaminés e surgem à distância.
O local é seco, quente e o vento é forte. Mas a beleza é avassaladora.
Milênios atrás, este volátil ambiente vulcânico esculpiu naturalmente os pináculos à minha volta, até que eles atingissem seus formatos cônicos parecidos com cogumelos, que agora atraem milhões de visitantes para caminhar ou andar de balão nesta região central da Anatólia.
Mas, abaixo da frágil superfície da Capadócia, encontra-se outra maravilha, também de proporções gigantescas, que passou séculos escondida: uma cidade subterrânea que podia abrigar por meses até 20 mil habitantes de cada vez.
A antiga cidade de Elengubu, hoje conhecida como Derinkuyu, fica a mais de 85 metros abaixo da superfície e inclui 18 níveis de túneis. É a maior cidade subterrânea escavada do mundo.
Ela foi habitada de forma quase constante por milhares de anos, trocando de mãos, dos frígios para os persas e depois para os cristãos, na Era Bizantina. Até que foi finalmente abandonada nos anos 1920 pelos gregos capadócios, que fugiram em massa para a Grécia após a derrota na Guerra Greco-Turca de 1919-1922.
Os salões da cidade espalham-se por centenas de quilômetros embaixo da terra, mas acredita-se que mais de 200 pequenas cidades subterrâneas separadas, que também foram descobertas na região, possam estar conectadas a esses túneis, criando uma enorme rede subterrânea.
Aves arqueólogas
Segundo Suleman, meu guia, Derinkuyu foi “redescoberta” apenas em 1963 por um morador local anônimo que estava perdendo suas galinhas. Enquanto ele reformava sua casa, as aves desapareciam em uma pequena fenda criada durante a reforma e nunca mais eram vistas.
O cidadão turco decidiu investigar o que estava acontecendo e, depois de cavar um pouco, ele desenterrou uma passagem escura. Foi a primeira de mais de 600 entradas para a cidade subterrânea de Derinkuyu que foram encontradas em casas particulares.
As escavações então começaram imediatamente. Elas revelaram uma emaranhada rede de moradias subterrâneas, espaços de armazenagem de alimentos secos, estábulos, escolas, vinícolas e até uma capela. Uma civilização inteira se escondia com segurança embaixo da terra.
A cidade das cavernas logo atraiu milhares de turistas turcos menos claustrofóbicos, até que, em 1985, a região foi declarada Patrimônio Mundial da Unesco.
Os responsáveis pela construção
A data exata da construção da cidade segue indefinida. Mas a referência mais antiga a Derinkuyu parece estar no livro Anábase, do historiador grego Xenofonte de Atenas, escrito em cerca de 370 a.C.
Derinkuyu é composta por 18 níveis de túneis que descem a mais de 85 metros abaixo da superfície — Foto: RALUCAHOTUPAN/GETTY IMAGES
Nele, Xenofonte menciona o povo anatólio, que morava em casas escavadas no subterrâneo da Capadócia ou perto dela, e não nas cavernas mais populares ao longo dos rochedos, bem conhecidas na região.
Segundo Andrea De Giorgi, professor de estudos clássicos da Universidade do Estado da Flórida, nos Estados Unidos, a Capadócia é excepcionalmente adequada para este tipo de construção subterrânea, devido à falta de água no solo e às suas rochas maleáveis, que podem ser facilmente moldadas.
“A geomorfologia da região convida para escavar espaços subterrâneos”, afirma ele. O professor explica que o tufo – a rocha do local – teria sido escavado com relativa facilidade, usando ferramentas simples, como pás e picaretas.
O mesmo material piroclástico foi moldado naturalmente nas chaminés de fadas e nos pináculos que brotam da terra acima do solo.
Mas definir quem construiu Derinkuyu permanece um mistério, ao menos parcialmente.
As bases da extensa rede de cavernas subterrâneas costumam ser atribuídas aos hititas, “que podem ter escavado os primeiros níveis na rocha quando foram atacados pelos frígios, perto do ano 1200 a.C.”, segundo A. Bertini, especialista em moradias em cavernas no Mediterrâneo, no seu estudo sobre a arquitetura regional em cavernas.
Fortalecendo esta hipótese, foram encontrados artefatos hititas no interior de Derinkuyu.
Mas a maior parte da cidade provavelmente foi construída pelos frígios, que eram arquitetos muito habilidosos na Idade do Ferro e tinham os meios para construir instalações subterrâneas.
“Os frígios formaram um dos impérios mais importantes da antiga Anatólia”, ensina De Giorgi. “Eles se desenvolveram ao longo da Anatólia ocidental por volta do final do primeiro milênio a.C. e costumavam transformar formações rochosas em monumentos e criar notáveis fachadas cortadas na rocha. Seu misterioso reino incluía a maior parte da Anatólia ocidental e central, incluindo a região de Derinkuyu.”
No início, Derinkuyu provavelmente era usada para armazenar mercadorias, mas seu propósito principal era servir de abrigo temporário contra invasores estrangeiros. A Capadócia sofreu um fluxo constante de impérios dominadores ao longo dos séculos.
Definir quem construiu Derinkuyu permanece um mistério, ao menos parcialmente. — Foto: RICHARD BECK/GETTY IMAGES
“A sucessão de impérios e seu impacto sobre o panorama da Anatólia explicam o motivo de recorrer a abrigos subterrâneos como Derinkuyu”, segundo De Giorgi. “Mas foi na época dos ataques islâmicos [ao Império Bizantino, predominantemente cristão, no século 7°] que essas moradias foram mais utilizadas.”
Cidade planejada
Embora os frígios, persas e seljúcidas, entre outros povos, tenham habitado a região e se expandido pela cidade subterrânea nos séculos seguintes, a população de Derinkuyu atingiu seu maior nível durante a Era Bizantina, com cerca de 20 mil pessoas morando embaixo da terra.
Hoje, você pode sentir a realidade angustiante da vida subterrânea por apenas 60 liras turcas (cerca de US$ 3,30 ou R$ 17). Enquanto descia pelos túneis estreitos e mofados, com suas paredes escurecidas pela fuligem acumulada por séculos de iluminação com tochas, comecei a perceber a estranha sensação de claustrofobia.
Mas a engenhosidade dos diversos impérios que se expandiram em Derinkuyu logo se tornou evidente. Corredores curtos e intencionalmente estreitos forçam os visitantes a caminhar inclinados e em fila indiana – claramente, uma posição incômoda para os intrusos – pelo labirinto de corredores e moradias.
Levemente iluminadas pelas lâmpadas, rochas circulares de meia tonelada bloqueavam as portas entre cada um dos 18 níveis e somente podiam ser movidas pelo lado de dentro. Pequenos orifícios perfeitamente redondos no centro dessas portas imensas permitiam que os moradores atacassem os invasores com lanças, mantendo a segurança do perímetro.
“A vida no subterrâneo provavelmente era muito difícil”, afirma Suleman, meu guia. “Os moradores descansavam em jarros de argila vedados, viviam à luz de tochas e descartavam os cadáveres em áreas [designadas].”
Cada nível da cidade era cuidadosamente projetado para fins específicos. Os animais de criação viviam em estábulos mais perto da superfície, para reduzir o cheiro e os gases tóxicos, oferecendo ainda uma camada viva de isolamento térmico para os meses frios.
As camadas mais internas da cidade continham moradias, adegas, escolas e espaços para reuniões. Uma escola missionária bizantina tradicional, completa com cômodos adjacentes para estudo, foi identificada pelos seus tetos característicos em forma de abóbada e encontra-se no segundo piso.
Segundo De Giorgi, “as evidências da produção de vinho baseiam-se na existência de adegas, tanques de pressão e ânforas [jarras altas, com duas alças e gargalo estreito].” Esses cômodos especializados indicam que os moradores de Derinkuyu estavam preparados para passar meses abaixo da superfície.
Mas o mais impressionante sobre Derinkuyu é o complexo sistema de ventilação e o poço protegido, que teriam fornecido ar fresco e água limpa para toda a cidade. De fato, acredita-se que a cidade tenha sido construída inicialmente em volta destes dois elementos essenciais.
Derinkuyu tinha muitas entradas e mais de 600 delas foram encontradas em casas particulares — Foto: SVPHILON/GETTY IMAGES
Mais de 50 colunas de ventilação permitiam o fluxo de ar natural entre as muitas moradias e corredores de Derinkuyu. Elas eram distribuídas por toda a cidade, para evitar um ataque ao fornecimento de ar, que poderia ser fatal.
Já o poço tinha mais de 55 metros de profundidade e podia ser facilmente isolado de baixo pelos moradores da cidade.
A construção de Derinkuyu realmente foi genial, mas ela não é a única cidade subterrânea da Capadócia. Com 445 km², ela é apenas a maior das pelo menos 200 cidades subterrâneas encontradas abaixo das planícies da Anatólia.
Mais de 40 dessas cidades menores têm três ou mais níveis abaixo da superfície. Muitas são conectadas a Derinkuyu por túneis cuidadosamente escavados, alguns com até 9 km de extensão. Todos eles são equipados com saídas de emergência, que oferecem retorno imediato à superfície em caso de necessidade.
Mas nem todos os segredos subterrâneos da Capadócia foram escavados. Em 2014, uma nova cidade subterrânea, talvez ainda maior, foi descoberta na região de Nevsehir, também na Anatólia central.
A fuga dos gregos capadócios em 1923 pôs fim à história viva de Derinkuyu. Mais de 2 mil anos depois da provável criação da cidade, ela foi abandonada pela última vez e sua existência foi esquecida pelo mundo moderno – até que as galinhas errantes da Capadócia fizeram a cidade subterrânea brilhar mais uma vez.
Fonte: BBC / Fotos: Getty Images